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A Força Literária Das Mulheres

Muito tempo atrás, no início do século (21, claro), minha turma do colegial era composta por alunos “santos”, “calmos”, praticamente lordes britânicos. Só que não! A gente só inventava coisa errada, brincávamos e tirávamos sarro de todo mundo e uma das brincadeiras tinha a ver com um amigo nosso que era cabeludão e barbudão. Era a época da novela da Rede Globo “O Cravo e a Rosa” e a brincadeira que fazíamos com nosso amigo era que ele se parecia com o Petruchio, um dos protagonistas da dramaturgia. Mal sabia que aquela trollagem tinha raízes mais profundas e que, de fato, o Petruchio só é Petruchio por causa da outra protagonista, a Catarina (Katherine).

A novela em questão é uma releitura da obra de arte que Shakespeare escreveu mais de 500 anos atrás. O que faz de Shakespeare ser um gênio, e gênios são atemporais, é a capacidade e a sensibilidade que ele teve ao escrever uma comédia com a personagem Feminina tão forte e inteligente quanto o personagem masculino numa época em que igualdade de gênero não era sequer embrionário. Tudo começa pelo título: “Taming Of The Shrew” (O Adestramento do Esperto, numa tradução livre). A primeira impressão é de que se trata de uma obra machista, pois sugere que Petruchio coloque rédeas em sua noiva, com conceito completamente errado; onde já se viu um homem “adestrar” uma mulher somente por ela ter opinião formada, ser inteligente e, muitas vezes, confrontar homens. No desenrolar da leitura, percebe-se que a genialidade de Shakespeare é tão incomparável uma vez que Petruchio acaba mudando suas atitudes e Katherine também, em alguns momentos, faz concessões. Olha a força que a Katherine tem! Shakespeare foi tão cirúrgico (como sempre) ao desenvolver sua comédia que é praticamente impossível dizer quem é o Esperto e quem é o Adestrador, o que deixa mais poderosa a figura da protagonista feminina haja vista que seria impensável uma mulher enfrentar o machismo vigente daquele momento e encabeçar decisões a ponto de se remodelar o comportamento de um homem.

Para alunos, de maneira geral, ler já é chato. Ler uma obra de 60 anos atrás é muito chato. Ler algo escrito 600 anos atrás é garantia de um sono pesado, babas e roncos. Como todas as atividades que constam no lesson plan, utilizar Shakespeare, mais do que nunca, precisa ter relevância com o contexto atual de nossos students. Nossas aulas de língua inglesa poderiam até utilizar a novela da Rede Globo em conjunto com o texto, mas a novela também já ficou bem velhinha para os alunos além de estar em língua portuguesa. Trabalho em dobro. Mas como diria o maior super herói do mundo, o Chapolin Colorado: não priemos cânico. Podemos começar a ler com nossos alunos – penso em turmas do EF2 que já têm mais maturidade para discutir temas importantes – um trecho pré selecionado da obra shakespeariana e promover uma discussão da leitura no idioma alvo. Na discussão, entre outras possibilidades, pode-se fazer uma comparação dos direitos das mulheres na época e quanto elas conquistaram até o presente momento. Para trazer o tema para algo mais atrativo, o filme “10 Coisas Que Odeio Em Você” dialoga com a comédia de Shakespeare e pode ser utilizado como um task de compreensão em sala de aula e, posteriormente, promover o mesmo ou outro debate como uma segunda tarefa. Para fechar, podemos pedir que os alunos selecionem comportamentos inadequados do Petruchio e comportamentos de vanguarda da Katherine e então eles iriam recriar os momentos de “Taming Of The Shrew”, como se fosse nos dias atuais, através de um role play.

Falar da importância feminina dentro da literatura inglesa requer, por baixo, uns 490 anos para talvez conseguir cobrir tudo com detalhes. Abordar a importância das mulheres na história da humanidade então é um continuum que exigiria mais de mil anos para contar. O fato é que elas merecem seu espaço em nossas aulas de inglês não somente nesse dia em que elas são comemoradas, mas sempre que houver possibilidade porque se Shakespeare falou que elas são fortes, quem somos para ir contra o gênio.

Cê Tem Bruneva? Ou Cê Tem Bruchove?

“Mas quando alguém te disser que está errado ou errada, que não vai S na cebola e não vai S em feliz, que o X pode ter som Z e o CH pode ter som de X”. Essa letra da música do grupo O Teatro Mágico, sem querer querendo, tem uma importância linguística interessantíssima. Pois vamos aos fatos: embora a língua portuguesa seja um idioma predominantemente ortográfico, isto é, quando falamos, o fazemos conforme escrevemos as palavras, quando conversamos as palavras acabam tomando uma outra forma fonética e, às vezes, ortográfica. Sabe aquela dúvida quando vamos escrever a palavra “exceção”? Pois essa dificuldade é similar quando nossos alunos travam na hora das atividades de listening.

O início da minha nada fácil carreira (o riso é livre), tive o privilégio de trabalhar numa escola de idiomas bem famosa e o primeiro verbo que os alunos aprendiam, logo na primeira aula, era eat em sua forma infinitiva. Quando os alunos tinham contato com o modelo do áudio, eles ouviam [tüwit] (to eat), uma pronúncia diferente da canônica que seria /tü/ /it/. O resultado: quando os alunos precisavam conjugar o verbo numa frase comum, o que tínhamos era “my daughter [wits] cornflakes for breakfast“. Isso mostra que quando oralizada, a língua inglesa também sofre mutações fonéticas que favorecem a fluência, como pode ser notado na adição do fonema /w/ no verbo eat na forma infinitiva que acompanha to. E de fato quando falamos, a fluência natural da frase oferece a adição de um fonema quando há encontro de sons vocálicos na língua inglesa, e digo sons porque o inglês é uma língua sonora, diferente do português. Essa característica da língua inglesa é um dos obstáculos para nossos alunos quando tem atividades de listening, pois os students vêem a palavra escrita, ouvem os professores produzirem /it/ incansavelmente e no áudio aparece /wit/. É claro que o cérebro deles vai dar um nó.

Por isso, é muito importante, primeiramente, sairmos do nosso status quo e enfim entendermos que pronúncia se trata de algo além do conjunto de fonemas que encontramos nos dicionários para descobrirmos a pronúncia das palavras quando soltas. Por que precisamos sair dessa armadilha? Porque palavras mudam de figura quando no meio de frases durante uma conversa, por exemplo. Aqui no Brasil, os mineiros são conhecidos por fazerem essa elisão de sons como podemos notar em (1) e (2).

(1) [‘popōō’po] na cafeteira?

(2) Quantos [‘kidʒi’kaːrni] você quer?

(3) [‘wadʒju’du] that?

No entanto, não somente os mineiros são capazes de tal proeza linguística, mas os falantes de maneira geral fazem uso desse “fenômeno” que favorece a fluência da oralidade. A diferença é que como se trata de nossa língua materna, não temos costume (infelizmente) de analisar essas junções de sons nas aulas de português e quando nos deparamos com essa situação na língua inglesa (ou qualquer outra estrangeira), temos o hábito de achar que a língua em questão é um bicho de sete cabeças. Mas não é. Pois bem, o simples fato de nossos alunos perceberem que em (3) existe um conjunto de sons que antecipa a palavra that e que a entonação se trata de uma pergunta é um grande passo. Isso é o início de uma análise top-down, ou seja, é uma percepção que nossos alunos trazem por eles mesmos. Great job, guys, mas não é o suficiente.

Segundo o professor Mark Bartram é preciso saber mais do que interpretar o que algo foi dito ou escrito. No caso da leitura, o trabalho fica um pouco mais fácil, mas no caso da oralidade… aí a coisa fica séria! Portanto precisamos separar um tempinho em nossas aulas para brincar com os sons da língua inglesa para que nossos students notem que o primeiro /d/ encontrado em (3) se trata de uma elisão da palavra did – embora eu classificaria como um quase extermínio da palavra – que se funde com a palavra you. A menos que esse tipo de trabalho bottom-up, ou seja, que uma análise que a fala ou o texto promove aos alunos, tenha sido realizado anteriormente, de fato encontraremos students travados nessa parte da atividade de listening.

Portanto, meu amigo professor, quando estiver preparando seu lesson plan, quer seja pra alunos avançados ou os pequeninos, reserve um espacinho para discutir as nuances sonoras que a língua inglesa oferece. Quanto antes fizermos esse trabalho, menor será a chance de termos alunos chegando ao colegial com dificuldades extremas nas atividades de listening, sem contar que a fala também irá melhorar.